Era um dia frio, em Boston. O ano, 1967. A tradicional maratona a se iniciar, a 71a. Entre os participantes, uma única mulher. A primeira, a disputar uma corrida de longa distância. Até então, nada no regulamento contra, muito menos, a favor, afinal, completar 42 Km não era um feito para o “sexo frágil”. Mas Katherine Switzer não pensava, assim. Ela simplesmente queria correr e preparou-se pra isso. Treinou, com afinco e disciplina. Inscreveu-se, como “K. Switzer” e, no tão esperado dia, lá estava ela!
Depois de uns poucos quilômetros, a estudante de 20 anos passou a chamar a atenção não só de outros corredores, mas também, da imprensa.
Então, algo tão inacreditável quanto uma mulher ousar correr uma maratona aconteceu:
O responsável pela prova apareceu, logo atrás, tentando impedi-la de prosseguir.
“Saia da minha corrida!”, berrou ele, querendo arrancar-lhe o número de peito!
O namorado de Katherine, que corria ao lado, instintiva e heroicamente o empurrou, e o furioso homem estabacou-se no meio-fio.
A corrida seguiu, relativamente tranquila. Katherine foi ganhando apoio e autoconfiança, a cada quilômetro percorrido.
“Vou completar esta corrida de quatro, se necessário. Se eu não terminar, todo mundo vai dizer que as mulheres não aguentam. Eu tenho de terminar!”, disse ela ao treinador.
Só depois de 4 horas e 20 minutos, ao cruzar a linha de chegada, pode dimensionar a importância do feito: as imagens do assédio e enfrentamento foram registradas pelos fotógrafos.
Poucos lembrarão do nome daquele homem, que tentou impedir Katherine Switzer de correr. Mas ela não somente virou história. Ela mudou a História: a própria e a do esporte!
Alguns já a conhecem mas é contada, em primeira pessoa, abrindo o primeiro de três episódios do excelente documentário “Makers women who make America”( “Mulheres que fazem a América”), disponível no canal “Philos”: ”Comecei como menina e terminei como uma mulher adulta”, ela resume a experiência.
A série, com narração de Meryl Streep, conta a trajetória do feminismo nos EUA: surgimento e amplificação, desde a década de 1950, com Betty Friedam e seu livro “A Mística Feminina”, até hoje.
Se acha que isso não não faz parte da sua realidade, engana-se! Somos alcançados todos os dias e a nossa rotina influenciada, pelos resultados desse movimento. (E, por favor, não me venha com aquela frase infame e machista de que “o único movimento feminino que lhe interessa é o dos quadris”!)
Da luta para ser inserida no mercado de trabalho, com direitos e salário equivalentes aos dos homens( no terceiro episódio, incisiva e emocionada fala de Oprah Winfrey a respeito), mudança de leis e maior participação política, discussão sobre aborto, violência doméstica e assédio sexual, até à ambivalência atual( que pareceria um retrocesso, aos olhos das desbravadoras: ”Trabalhar fora, ou cuidar dos filhos: eis a questão!”), tudo é meticulosamente destrinchado, usando rico material de época e depoimento de algumas das protagonistas e/ou testemunhas dos fatos.
Não é “assunto de mulher”, mas uma história que todos deveriam conhecer, porque nos faz entender a própria!
O que me fez pensar naquelas pioneiras, que defenderam igualdade; porque, não se trata de direitos do homem ou da mulher, do branco ou do negro, do homo ou do hetero mas, de direitos humanos: é mais ou menos assim que encerra seu discurso Hillary Clinton, então primeira dama, numa conferência para mulheres, na China.
Não pensei somente nelAs mas, nelEs. Qualquer um que ouse pensar diferente, que reme contra a maré, enfrente o “status quo”, que surja com uma ideia nova, algo que nunca ninguém tenha feito, antes: como é difícil! Mas são essas raras pessoas que provocam as maiores revoluções e mudanças de hábito, de comportamentos. São como uma cunha a abrir caminhos.
Imagino o que a mãe do descobridor do fogo devia lhe recomendar, à exaustão:
“Num mexe com isso, menino! É perigoso!”
Sabemos da perseguição que Galileu Galilei sofreu pela Inquisição, ao defender o heliocentrismo.
Conhecemos a história de Gandhi, Luther King, Mandela…
Que preço alguns pagaram por ser, simplesmente, eles? Alguns, com a própria vida.
Há pouco mais de uma semana Caitlyn Jenner, num elegantíssimo longo Versace, fez um discurso emocionado no ESPY Awards( e se esteve em Marte, no último ano, e não conhece essa história, entenda um pouco dela, aqui!)
“É uma honra ter a palavra ‘coragem’ associada à minha vida. Mas, nesta noite, outra palavra vem à minha mente e é ‘felicidade’. Se você quer me xingar, fazer piadas, duvidar das minhas intenções, continue. Eu aguento. Mas a verdade é que há milhares de crianças lá fora tentando chegar a um acordo sobre quem elas são e elas não deveriam ter de lidar com isso. Então, às pessoas que estão se perguntando o que é tudo isso, se é coragem ou publicidade, é o que acontece a partir daqui. Não é sobre uma só pessoa. É sobre milhares de pessoas, não apenas sobre mim. É sobre todos nós aceitarmos uns aos outros. Aceitem as pessoas como elas são”.
A frase do filósofo francês André Comte-Sponville, que tenho me esforçado a praticar:
“Esperar um pouco menos, amar um pouco mais”.
Não precisamos ser mártires, ou descobridores dos 7 mares pra fazer alguma diferença neste mundo, mas sim, bons entendedores. E por “bons”, entendamos: à luz do que temos hoje e, para onde essa aponta, exercitemos dois tipos de “com”-compaixão e compreensão, porque uma não existe sem a outra.
Como na música do Lulu: “Assim caminha a humanidade!”
Não vai pedir para o mundo parar e você descer, só por sua causa, né?…
(E dedico este post aos heróis, homens e mulheres, que concluíram a Maratona da Caixa, ontem, no Rio. E a todos que, bravamente enfrentam essa dura prova de longa distância, que é: viver. Aqui não há um dono do jogo, da verdade. Alguém que dite as próprias regras e as defina como certo ou errado, pode ou não pode, presta ou não presta. Não se trata de relativizar tudo mas, assim como Katherine Switzer podemos mudá-las, adaptá-las, criá-las!)